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Chamo-me Octobo.
Perdi a única batalha da minha vida e
morri. Agora já não estou na savana, tornei-me uma lenda e estou em todo o
lado.
Esta é a história da minha vida.
Ser leão é muito simples. Nas vinte e quatro horas do dia,
passamos, em média, vinte em ócio, a dormir. As sombras das acácias e dos
montículos de térmitas são a nossa cama durante a hora do calor, mas no início
da manhã, no fim da tarde e durante a noite, gostamos mesmo é de estar em
descampados, de barriga para o céu e patas abertas.
Além disso, vivemos num ambiente natural de grande sucesso, onde a
erva se recicla numa velocidade estonteante e onde, por isso, existe uma enorme
quantidade de herbívoros para nos alimentarmos. Estamos no topo da cadeia
alimentar. Somos predadores. Somos reis e é um privilégio reinar na savana.
Apesar de tudo isto nunca me senti orgulhoso por estar no topo, por ter caninos
aptos a rasgar carne, nem por ter sangue azul. Se pudesse faltava a todas as
aulas de caça que a minha mãe dava. O estrangulamento e a morte por sufocação
que ela ensinava, não representava para mim uma forma de vida. Aliás, a morte
que necessitava de praticar para o meu próprio sustento, não tinha nascido
comigo. Foi na minha infância, em brincadeiras com o meu irmão, que me apercebi
que éramos muito diferentes. Ele era muito mais afoito. Tinha um instinto de
predador apuradíssimo, desafiava os meus pais, frequentava o curso da minha mãe
assiduamente com uma concentração assustadora e, claro, ganhava-me sempre no
mano a mano. No regulamento interno do nosso covil, a minha mãe caçava, o meu
pai era o primeiro a sentar-se à mesa e a banquetear-se, o meu irmão desfilava,
vitoriosamente, em frente à carcaça e eu...bem, eu sentava-me, constrangido, a
olhar. Tudo acontecia quando o Sol partia para outro hemisfério. A minha mãe
acordava e, automaticamente, um clima de tensão caía do ar e se abatia sobre
nós. A cauda dela começava a abanar, o abdómen ficava contraído, os olhos e as
orelhas viravam-se para a presa. Do outro lado, avistava-se um predador a
rondar. O reflexo era imediato. O cheiro a perigo erguia-lhes rigidamente a
cabeça e um medo de morte punha-lhes o corpo trémulo. Uns metros à frente, uns
segundos depois, já estava. Jantar na mesa. Eu não era indiferente a este
processo de caça. Comia pouco, o mínimo e indispensável. Com a mesma idade,
tinha menos um terço do peso meu irmão. Sentia pena das presas. Sentia a sua
última respiração resignada e o seu último olhar periférico para a vida numa
despedida da casa onde habitaram e da vida libertina que tiveram. Com o
pescoço, entre as duas mandíbulas da minha mãe, aceitavam o destino e paravam
de lutar. E aí, olhavam mas já não viam, e deixavam-se ir.
Apesar de não
ter as brincadeiras normais, nem a mesma atitude, efusiva de contemplação e regozijo
pela refeição, não sabia quem estava certo nem se poderia viver na diferença. A
resposta veio numa tarde invernosa, na época das chuvas. Acordei num trovejar
intenso, com um relâmpago feroz que virou a noite em dia e que confirmou o que
já esperava. Estava sozinho. Procurei a minha família durante muitos dias, mas
a chuva misturou-se com a terra e a lama apagou as suas pegadas. As urinas
perderam o cheiro e, sem território marcado, desnorteei-me. Chorei muito,
fiquei ainda mais fraco, entregue, única e exclusivamente, a mim e à sorte. Os
meses foram passando e eu fui subsistindo à custa de restos espalhados pela lei
do mais forte, que alguns necrófagos desatentos me deixavam.
Mas um dia, percebi que era mais que um leão, que era mais que uma imagem
ameaçadora e que tinha coração. Um coração enorme de amor e compaixão. E aí
percebi a razão pela qual tinha ficado órfão. Porque jamais poderia sentir o
que estava a sentir se tivesse ido sempre às aulas da minha mãe ou celebrado a
morte de um ser vivo. Finalmente, percebi o meu instinto quando olhei para
aquela cria de Órix. Nunca mais me vou esquecer desse momento. Eu estava
rastejado no chão, enquanto ela deambulava sozinha por entre a vegetação.
Estava fraca e perdida dos seus progenitores. Ergui-me nas quatro patas e
quando lhe olhei nos olhos, senti um ar quente invadir o meu peito, adocicar as
minhas feições, empurrar-me as garras para dentro e, gentilmente, soprar-me na
sua direcção. Aproximei-me, não corri para ela nem ela fugiu de mim.
Aproximei-me ainda mais e ela, sem instinto, deixou-me chegar bem perto. O
alarme do seu corpo já tinha disparado mas não tinha reacção. Estava ali com as
pernas, ainda desajeitadas, a vacilar sem potência para correr pela vida.
Quando estava a menos de uma pata de distância, apercebi-me do seu medo de
deixar uma vida que acabara de estrear, do seu sofrimento pelo desaparecimento
da mãe e da angústia de estar à minha frente. Lembrei-me da noite em que apenas
fiquei eu, da sensação que a morte dá por me poder levar a qualquer instante e
de repente senti-me responsável por ela e desejei fazer qualquer coisa em seu
benefício. Foi assim que senti que podia ser mais do que aquilo que era.
Durante três semanas não tirei os olhos dela. Levava-a a beber água no rio, em
sítios onde sabia que não haviam predadores e às horas em que, supostamente,
estariam a descansar. Corria com ela para que pudesse criar músculo e
mostrava-lhe caminhos secretos, que aprendera nos meses de solidão, que davam
acesso a zonas de alguma vegetação para que se pudesse alimentar, ganhar peso
e, assim, impor respeito e ter armas para se defender sozinha. Lambia-a,
lavava-a, adormecia-a e empurrava-a com o focinho nas alturas em que estava
mais cansada. Nessas três semanas, eu fui a sombra protectora da mãe
desaparecida, a sabedoria do pai ausente e a amizade do irmão que nunca teve.
Eu andava esfomeado, mas tranquilo. Quanto mais me dedicava àquele Órix, melhor
me sentia. Até que um dia, num momento de pura exaustão, deitei-me na sombra
intermitente de uma acácia, cruzei as patas, encostei a cabeça e perdi-a de
vista. Um rugido, de tom mais grave que o trovão que me acordara para o
primeiro dia do resto da minha vida, assustou-me o coração e levantou-me
bruscamente. Ainda a cambalear, apercebi-me do desaparecimento do Órix. Não o
via em lado nenhum e só encontrei o seu cheiro vermelho em algumas gotas de
sangue que marcavam um caminho perigoso que tinha de seguir. O trajecto foi
curto, tal como os segundos que lhe restavam. Encontrei-o, ainda vivo, com o
pescoço entre as maxilas de um macho dominante e a língua de fora. Fiquei
escondido, atrás do medo e, inerte, assisti à sua alma partir, juntamente, com
alguns destroços do meu coração.
O tempo ensinou-me a aceitar a realidade. A savana estava certa.
Impera sempre a lei do mais forte. Porém, não deixei de viver da forma que me
fazia feliz. Nem conseguia. Assumi que vivia numa savana diferente, criada por
mim, onde as leis serviam a todos e a força maior era a que provinha do
coração. Desde esse dia em diante, até ao meu último segundo, adoptei mais três
crias de Órix e duas Impalas. Uns reencontraram os progenitores, outros
desapareceram e outro partiu comigo quando num acto de coragem o tentei
defender das garras de dois candidatos a rei de um clã qualquer. Foi a única
batalha que perdi. Foi a minha vez de olhar perifericamente para a vida,
despedir-me da minha savana e deixar-me ir.
Vivi muito. Andei muitas vezes
perdido, sem saber para onde ia, mas fui sempre por amor. E é por isso que hoje
os ventos ainda sopram o meu nome. Gerações atrás de gerações sabem quem fui e
quem sou.
Sou Octobo, a lenda do Amor."
in "Os Laços que nos Unem", 2008
(Gustavo Santos)